Millôr
Fernandes, em Ipanema, Rio de Janeiro, 1958
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ESPECIAL
MILLÔR FERNANDES
por
SILVIO MIELI
A
INFORMAÇÃO DE(S)PONTA
HUMOR
METAFÍSICO
ARTE
É INTRIGA
Desenho
de Millôr Fernandes para ilustrar o seu Hai-Kai:
A
vida é um saque
Que
se faz no espaço
Entre
o tic e o tac
Informação de(s)ponta
Uma
auto-caricatura de Millôr Fernandes trajado de índio,
enterrando uma lança vermelha na areia, chamava a matéria
de capa: "Pela demarcação das terras de Ipanema;
Millôr Fernandes refaz os caminhos do bairro que escolheu
para viver". (1) Assim como as madalenas embebidas
em chá instigaram a memória involuntária
de Marcel Proust no "Caminho de Swann" (primeiro volume de "Em
Busca do Tempo Perdido"), um buraco aberto no asfalto da rua Visconde
de Pirajá, deixando à mostra sinais dos trilhos
por onde passavam antigos bondes, remeteu Millôr Fernandes
a uma Ipanema que não existe mais. Antes da exposição
bem-humorada dos motivos necessários e suficientes para
a demarcação do novo território Ipanemense,
Millôr esclarece:
A
vantagem de ter vivido depois dele (2) (nasci dois
anos depois de sua morte), tê-lo lido exaustivamente
(mentira, ele não cansa), ter lido também algum
Freud e, sobretudo, chegado ao computador, é que meu
metapensamento se tornou instantâneo. Penso no que penso,
e como penso e porque penso, o tempo todo, sei logo se a informação
me foi dada pelo olfato, pela vista, pelo gosto, pelo ouvido,
ou pelo tato (o mais amplo dos sentidos e o único ativo).
(3)
>>>volta
Esta
síntese poderia prefaciar qualquer uma das suas obras em
prosa (peças de teatro, coletâneas de pensamentos);
em verso (livros de poesias); introduzir alguns de seus hai-kais
ou integrar o catálogo de uma das cinco exposições
que realizou ao longo de mais de 50 anos de carreira. Cairia muito
bem na última delas, a mostra coletiva (4) da
qual aceitou participar, com cinco guaches sobre papel, por causa
do nome: "Jogo de Memória".
Capa
da Revista de Domingo do Jornal do Brasil, ano 15, nº
764, 23/12/90, p.14
>>>volta
Entretanto
a articulação lúdica dos elementos da memória,
do pensamento/metapensamento, instantaneidade, percepção,
pulsa mais forte no tabuleiro do jogo onde a informação
desponta no encontro entre duas linguagens. Ao invés de
criar um mercado para os seus desenhos, Millôr preferiu
investir nos processos industriais gráficos, reproduzindo-os
em jornais e revistas, espaços abrangentes e economicamente
recompensadores. Assim, ele demarcou parte do seu território
criativo numa região fronteiriça entre as artes
gráficas...
Quando
visitei pela primeira vez a Itália, em 1952, fiquei
encantado com os pintores pré-renascentistas; depois
veio o entusiasmo por Degas. Depois Van Gogh e Paul Klee.
Agora os humoristas mais modernos. São eles minha maior
admiração... Os humoristas e os artistas gráficos
se perdem menos do que os artistas plásticos em geral...
Pode ser uma piada ocasional, mas ela deve ter também
um alcance social. Ou ser da mais completa e ampla força
metafísica... O que tem acontecido é que os
artistas plásticos estão se esquecendo do prazer
da arte em nome de teorias. Cada desenho que faço me
dá prazer. Na medida em que você se diverte,
o resultado é melhor. É mais livre. Na minha
exposição (5) estou lançando
o abstracionismo lúdico.(6)
>>>volta
E
o outro estado lúdico de Millôr Fernandes é
a comunicação verbal:
Eu
não estou negando a beleza de uma tela, agora são
5 bilhões de pessoas nesse mundo falando, 5 bilhões
de pessoas criando na palavra. Só a palavra tem 5 bilhões
de pessoas criando permanentemente. Por mais pintores que
existam, por mais que a música tenha atingido a classe
média, não tem tanta gente desenvolvendo um
produto como a palavra...Mas eu dou um exemplo mais clássico.
Os chineses têm uma frase que se repete cansativamente:
"Uma imagem vale mil palavras". E eu sempre digo: diz isso
sem palavra! (7)
O
traço de Millôr Fernandes (Fig.1) sofreu grande influência
do artista, desenhista e caricaturista Saul Steinberg. "Deste
eu diria apenas uma palavra fulgurante. Eu o considero
o maior artista de todo o séc. XX", confessaria Millôr.
Em 1955 ambos dividiram o primeiro prêmio num concurso de
desenhos em Buenos Aires. Mas a informação cotidiana,
valorizada pelos vínculos entre a linguagem verbal e não
verbal afirmaria-se como sua marca registrada desde a seção
POST-SCRIPTUM-POSTE ESCRITO, que aos 16 anos mantinha na revista
carioca "A Cigarra". Depois em "O Cruzeiro", com a célebre
seção PIF-PAF, a mais lida da revista que é
até hoje o maior fenômeno de vendagem no país.
Millôr dispunha de duas páginas onde alternava desenhos,
histórias, poemas, testes, além de eventuais reportagens.
Foi despedido por causa de uma delas, "A
verdadeira história do Paraíso", assinada pelo
filósofo Emmanuel Vão Gôgo, um dos seus pseudônimos,
que afirmava coisas do tipo: "Mestre, respeito o senhor, mas não
a sua obra. Que paraíso é esse que tem cobra?".
(8)
Desenho
de Saul Steinberg
>>>volta
A
primeira exposição ocorreu em 1957, no Museu de
Arte Moderna do Rio de Janeiro. O jornal carioca "Correio da Manhã",
festejava a "transformação do alegre caricaturista
de ontem no fino humorista de hoje, este bem pouco conhecido,
pois seus melhores trabalhos permanecem sempre no círculo
dos seus íntimos à espera da grande oportunidade".
(9) Dois trabalhos dessa época chamam atenção,
o "Memento de Ravena", caricaturando a relação do
público frente à obra de arte (o casal quer perenizar
o momento da visita aos mosaicos ravenianos) e o "Enterro de Mondrian",
destruído no incêndio do MAM-Rio e refeito em 1977.
Neste último, as linhas geométricas, objeto de tantos
estudos por parte de Mondrian, transformam-se em estandartes carregados
por personagens vestidos de padres.
"Memento
de Ravena" (1957). Bico de pena. Millôr assinou o trabalho
como Emanuel Vão Gôgo
Millôr
Fernandes, "Enterro de Mondrian" (1957-1977). Tríptico,
nanquin e guache
>>>volta
Em 1964 Millôr funda com Ziraldo, Jaguar e Fortuna (pioneiros
do cartum no Brasil) e outros desenhistas o jornal quinzenal "O
Pif-Paf", considerado pelo Serviço Nacional de Informações
(SNI) do regime militar como o início da imprensa alternativa
no Brasil. O jornal só chegou ao oitavo número.
Uma advertência escrita por Millôr praticamente antecipa
as causas da vida curta do "Pif-Paf":
Quem avisa, amigo é: se o governo continuar deixando
que certos jornalistas falem em eleições; se
o governo continuar deixando que determinados jornais façam
restrições à sua política financeira;
se o governo continuar deixando que alguns políticos
teimem em manter suas candidaturas; se o governo continuar
deixando que algumas pessoas pensem por sua própria
cabeça; e, sobretudo, se o governo continuar deixando
que circule esta revista, com toda sua crítica e irreverência,
dentro em breve estaremos caindo numa democracia. (10)
No
final dos anos 60 funda "O Pasquim", que mexeu
visivelmente com a mentalidade jornalística durante os
anos de censura cerrada: "Não estou desanimando vocês
não, mas uma coisa eu digo: se essa revista for mesmo independente
não dura três meses, se durar três meses, não
é independente. Longa vida a essa revista!",(11)
augurava Millôr no primeiro número do "Pasquim" que
não conheceu a segunda metade da década de 70. Aqui
também uma observação antecipa a morte prematura:
"P.S....nós, os humoristas, temos bastante importância
para ser presos e nenhuma para ser soltos". (12)
Muitas
das idéias desenvolvidas no "Pasquim", Millôr aprimoraria
durante a sua passagem pelas revistas "Veja", "Isto É"
, "Isto É - Senhor" e no seu
"quadrado" diário no "Jornal do Brasil" . Destaque
para as colunas rápidas com definições objetivas,
como as Reflexões sem Dor ("O dedo do destino
não deixa impressão digital"); os Apotegmas do
Vil Metal ("Só o tenho em boa conta porque no fim pago
a conta"); o Dicionário das Idéias Imediatas
(verbete Deus: "agora com os astronautas se mudou para mais
longe", verbete Ator: "não representa nada"); as
Definições Definitivas, Ora Pílulas,
Perguntas Impossíveis de Responder ; os Poemeus
("Quem vai julgar/Quem é belo ou feio/o que me odeia/ou
eu que os odeio?"), os Provérbios nada Proverbiais
("Deus dá o frio a quem não tem dentes") ou a seção
Livre pensar é só Pensar: "Cada um carrega
a sua cruz. Ainda bem que eu não sou religioso".
Millôr
Fernandes e a "Abertura Política" de 1978, em
Veja de 20/12/78
Uma
das marcas de Millôr Fernandes nas suas intervenções
na imprensa escrita: a mistura de frases proverbiais sintéticas
e objetivas com cartuns ou caricaturas, em Veja de 02/04/80
>>>volta
Humor
Metafísico
Em
uma das coletâneas de seus Hai-Kais, Millôr Fernandes
faz uma pequena introdução para fins didáticos
aos não iniciados na arte oriental dos Hai-Kus ou Hokkus
(mais conhecidos como Hai-Kais mesmo), afirmando que "apesar de
sua forma frágil, quase volátil, dependendo da imagística
mais do que qualquer outra poesia, uma implosão, não
uma explicitação, o Hai-Kai é, contudo, uma
forma fundamentalmente popular e, inúmeras vezes, humorística,
no mais metafísico sentido da palavra". (13)
O importante será observar que a obra de Millôr,
desde o desenho a bico de pena até a utilização
do computador, é que é metafísica, no mais
humorístico sentido da palavra.
Desenho
de Millôr Fernandes para ilustrar o seu Hai-Kai:
Probleminhas
terrenos:
Quem
vive mais
Morre
menos ?
Quando
Henri Bergson contrapõe humor de um lado e ironia de outro,
está, na verdade, criando uma dimensão antagônica
entre o real e o ideal, o que é do que deveria
ser. A ironia, segundo Bergson, consiste em enunciar "o que
deveria ser fazendo crer que é precisamente o que é".
(14) Ao contrário, o humor procede descrevendo
"minuciosa e meticulosamente o que é fingindo crer que
é assim mesmo que as coisas deveriam ser". (15)
Assim, ambas são formas de sátiras, mas a ironia
é de natureza oratória, pertence à categoria
do ideal ligado à moral ("a idéia do bem que deveria
ser"), enquanto o humor pertence ao real, de onde tenta buscar
a essência:
O
humorista é aqui um moralista disfarçado de
sábio, algo como um anatomista que só faria
a dissecação para nos desgostar; e o humor,
no sentido estrito do termo, é mesmo uma transposição
do moral em científico." (16)
>>>volta
"Ora,
o humor e a metafísica encontram-se no mesmo exercício
de dissecação da realidade tal como ela é
e não como o bom senso ou o senso comum gostariam que ela
fosse. É por isso que o paradoxo, um dos recursos lingüísticos
preferidos de Millôr, é o pano de fundo para a aproximação
entre humor e metafísica. O bom senso, operando
uma verdadeira anulação das diferenças, afirma-se
como "a ideologia das classes médias, que se reconhecem
na igualdade como produtos abstratos", define Deleuze. Já
no senso comum os diferentes objetos igualizam-se "e os diferentes
eus tendem a se uniformizar". Logo, o que Deleuze identifica no
paradoxo como manifestação da filosofia (ao contrário
do bom senso), é válido também para os efeitos
paradoxais no humor:
"...o
paradoxo quebra o exercício comum e leva cada faculdade
diante do seu próprio limite, diante de seu incomparável,
o pensamento diante do impensável que, todavia, só
ele pode pensar, a memória diante do esquecimento,
que é também seu imemorial, a sensibilidade
diante do insensível, que se confunde com o seu intensivo.
(DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição.
Rio de Janeiro, Graal, 1988, p.365)
No
hai-kai destacado no início, humor e metafísica
encontram-se para atingir o que Bergson considera essencial na
atividade do caricaturista, que é o de adivinhar sob as
harmonias superficiais da forma, as revoltas profundas da matéria.
(17) Mas ambos os recursos estarão tanto mais
próximos da realidade em constante transformação
quanto menos lançar mão dos artifícios analíticos
para retratar os fenômenos. Tomemos como exemplo a caricatura
publicada no "Jornal do brasil", em abril de 1988.
Não
houve maior ironia do destino do que José Sarney, o vice,
assumir a presidência nas circunstâncias em que o
Brasil vivia em 1985. Diante dessa ironia maior, portanto, a sutil
ironia de Millôr denuncia que a situação por
si só já estaria invertida (do latim vice-versa:
às avessas). Estamos ainda no nível do que deveria
ser. Ocorre que ele não só quer fazer crer que assim
é na realidade (completando a definição de
Bergson para a ironia), como carrega nos traços e nas letras
(característica básica da caricatura) ao
dizer: nunca (advérbio de tempo) um vice (Sarney) foi tão
(advérbio de intensidade) versa (invertido, contrário,
oposto, às avessas). Sendo que a palavra versa, além
de estar invertida, foi escrita de cabeça para baixo e
como se fosse o negativo das outras letras (as letras V, E, R,
S, A aparecem em branco num fundo preto). Firma-se a noção
de contrariedade absoluta e radical em relação ao
vice a partir das palavras colocadas em primeiro plano. As indicações
do cartunista deixam claras suas opiniões e confirmam sua
revolta e seu posicionamento sobre a questão: negativo,
inverso, de cabeça para baixo.
>>>volta
O
humor nasce justamente do que deveria ser, Tancredo Neves (o que
não foi), cuja caricatura serve de fundo para a construção
verbal. Dos limites superficiais do rosto de Tancredo surgem três
caricaturas totalmente deformadas ("as revoltas profundas da matéria")
de Sarney, uma das quais, a mais nítida, está de
cabeça para baixo, à esquerda da palavra versa.
O mais intrigante, porém, é que as caricaturas guardam
entre si uma certa semelhança. É como se todas tivessem
origem na mesma matriz (baseada nos traços característicos
de Tancredo), que foi passando por fases sucessivas de deformação,
degenerescência, até chegar a Sarney. A marca registrada
é o bigode implícito e mal delineado (não
se sabe onde começa a boca e onde termina o bigode e vice-versa)
nas quatro caricaturas.
Importante
observar também que, para Bergson, o riso seria uma espécie
de castigo, pelo qual corrigimos desvios ocorridos dentro das
normas rígidas de comportamento sob as quais vivemos. A
visão impiedosa e pouco solidária de Millôr
em relação ao ex-presidente Sarney é evidente
em toda série de cartuns que tocam sua imagem. Não
só os seus possíveis escorregões, mas cada
elemento do seu caráter é tratado causticamente.
Nesse sentido, a palavra versa alude também ao fato
de Sarney ser escritor, poeta, membro da Academia Brasileira de
Letras. Mas, segundo o cartunista, um versificador "às
avessas", além de "negativo" e com uma falta de flexibilidade
que só não comove porque poderia interromper o riso
e comprometer a crítica.
Se
há uma característica essencial na obra de Millôr
(que será fundamental para nos aproximarmos da série
"Arte é Intriga" no próximo item) é que sua
técnica visual, seu traço, e sua estrutura lingüistica
sintética e objetiva procuram reconhecer o real na própria
variabilidade. O humor metafísico de Millôr instala-se
na tendência dos fatos cotidianos por um esforço
perceptivo:
Pois
é, a gente chega a um apuramento, a um domínio
tão grande do raciocínio lógico, que de
repente tem a impressão que esse raciocínio já
não está funcionando mais. A nossa percepção
fica sendo uma percepção "sensorial, metafísica.
As verdades da vida nos chegam sensorialmente, é verdade
que fundadas no raciocínio lógico, mas esse não
mais se mostra, da mesma forma que um alicerce de um edifício
desaparece quando se "constrói o edifício..."
(18)
>>>volta
Arte
é Intriga
Há
uma tela do pintor italiano Giorgio De Chirico exposta no Museu
de Arte Moderna de New York que intriga a começar pelo
título: "O Grande Metafísico". Numa praça
entrecortada pela sombra de prédios clássicos
ergue-se a estátua de um personagem envolvido quase até
a cabeça por objetos geométricos, panos, quinquilharias
dependuradas; a figura, ainda que sem rosto, parece dirigir
seu olhar ou para algum ponto da praça ou para além
dela. O tema é recorrente na obra do artista considerado
um dos precursores do surrealismo. A situação
do "Grande Metafísico" toca, impressiona, intriga profundamente.
"O
Grande Metafísico", Giorgio De Chirico
A
mesma sensação é relatada por Millôr
Fernandes, só que diante de um retrato a óleo do
alemão George
Grosz (que entre 1918 e 1925 criou uma das maiores coleções
de desenhos satirizando a sociedade alemã):
Era apenas um retrato de um homem de uns 40 anos com os óculos
de aro de ouro. E eu nunca me esqueci deste quadro, desse homem
me olhando naquele quadro, porque me impressionou profundamente.
Claro que eu posso arranjar razões razoáveis, razões
intelectuais para explicar porque Grosz pintava dessa ou daquela
maneira. Mas, na verdade, aquilo me intrigou; ficou aquela "figura
me olhando e eu não sei até hoje se existe alguma
coisa além daquela pintura, alguma coisa que fosse metafísica.
(19)
Os
dois exemplos abordam elementos considerados intrigantes suscitados
por pinturas ditas "convencionais" do ponto de vista das técnicas
utilizadas pelos artistas. Porém, será o próprio
Millôr a aprofundar a discussão sobre arte como
intriga (a partir do segundo semestre de 1987), quando alguns
dos seus desenhos passam a ser feitos através da técnica
computer painting, com o auxílio de um microcomputador
XT acoplado a um monitor em cores.
>>>volta
Na
revista "Isto É" (nº 560, de 26/08/87) surge o primeiro
desenho da série "Arte é Intriga". Uma mulher boquiaberta,
cuja expressão lembra a litogravura "O Grito" do expressionista
norueguês Edward Munch, veio acompanhada da seguinte nota
explicativa: "EXECUTADO POR COMPUTADOR PC-XT, SORRY PECEFERIA".
A partir daí, Millôr passou a incluir sob o mesmo
título "Arte é Intriga" algumas de suas intervenções
digitais, sempre fiel à tradição de promover
encontros entre o verbal e o não-verbal, só que
agora procurando observar qual a natureza da intriga emergente
da tela do computador:
A
idéia de intriga veio exatamente de eu estar fazendo
um desenho no computador. Tudo tem um grau de imprevisibilidade
muito grande, mas o computador tem muito mais no caso do desenho.
Você começa a fazer o desenho e ele vai se compondo
com a tua possibilidade de criatividade e, de repente, o computador
faz uma coisa que você não esperava. Você
registra e dá um bom resultado. Então quando eu
fiz uns desenhos eu coloquei o título "Arte é
Intriga", porque aquela coisa me intrigava. (20)
Às
vezes só o título ("Arte é Intriga") aparecia
sobreposto ao desenho, em outras ocasiões um pequeno comentário
dialogava com a criação digital. O paradoxo também
foi incorporado à série, quando ao apresentar uma
seleção de oito desenhos computadorizados, Millôr
responde: "Alô, isto é uma gravação.
O Millôr não está. Só o computador".
É
preciso não perder de vista que a mídia impressa
é o espaço privilegiado destas incursões
do artista plástico Millôr Fernandes. Muitas etapas
de produção dentro dos jornais ou revistas já
estão informatizadas (alguns têm quase a totalidade
do processo "automatizado"). Apesar de dotados com o que há
de mais sofisticado na área da editoração
eletrônica, grande parte da mídia impressa continua
com a mesma mentalidade da revolução industrial.
O terminal de computador é concebido ainda como ferramenta,
talvez uma máquina de escrever um pouco mais completa;
os softwares de editoração eletrônica são
tomados como simples agilizadores de procedimentos antes realizados
manualmente por diagramadores e paginadores.
>>>volta
Na
prática, o tempo economizado pela queima dessas etapas,
ao invés de concentrar-se na redação visando
uma melhor qualidade do produto final, evade-se para outros setores.
Além disso o jornalismo impresso tenta competir com o imediatismo
da informação televisiva; na impossibilidade de
imprimir o presente, ao vivo, arma uma tática de antecipação,
tentando prever o que vai ou o que pode acontecer. Tomando o tempo
como um limite externo determinado pelas imagens televisivas,
a mídia impressa baseada na previsão dos eventos
assume a pretensão do domínio temporal. Esta postura
em relação a um limite externo aliada a um inevitável
narcisismo interno oprimem o jornalista no sentido de embutir
cada vez mais elementos, dentro do espaço que lhe cabe
e do tempo exíguo que lhe resta. Há uma urgência
na antecipação que logo se transforma num processo
angustiante movido pela aposta na imagem (a própria do
jornalista e a televisiva). No concreto, quando o jornalismo impresso
aluga um tempo incompatível com a natureza da sua linguagem,
vê-se coagido a projetar informações na forma
de profecias; o valor da informação torna-se diretamente
proporcional ao número de imagens que se consegue projetar.
A potencialidade dos recursos impressos, baseada na articulação
criativa entre os domínios do verbal e não-verbal,
reduz-se a uma ferramenta que tenta alcançar um tempo perdido.
Esta batalha desproporcional foi retratada por Millôr com
requintes tragicômicos no desenho "Registro Fúnebre
na Era da Informática" , que capta a amargura do editor
que se suicidou atirando-se dentro da máquina de fax do
jornal.
Para
não aniquilar o tempo, portanto para não perdê-lo,
a imprensa escrita precisa redescobri-lo. Redescobrir o tempo
perdido para a mídia eletrônica significa, num primeiro
momento, não querer dominar um tempo concebido como entidade
externa veiculada eletronicamente. A imprensa é tecida
no e do seu próprio ritmo. Ele é imanente
a ela e já basta a hora do fechamento de qualquer edição
como barreira improrrogável. Millôr traz essa questão
para dentro do universo das informações escritas
ao lançar um "jogo de memória" disputado pelas informações
numa nova dimensão temporal. Ou, na prática, Millôr
redescobre o tempo perdido pela mídia impressa através
da "computer art" . Quanto à palavra arte, ele a
utiliza no mesmo sentido sugerido por Proust e tão bem
captado por Deleuze:
O
tempo redescoberto, em seu estado puro, está contido
nos signos da arte. Não se deve confundi-lo com outro
tempo redescoberto, o dos signos sensíveis, que é
apenas um tempo que se redescobre no seio do próprio
tempo perdido, e que também mobiliza todos os recursos
da memória involuntária, dando-nos uma simples
imagem da eternidade... O que a arte nos faz redescobrir é
o tempo tal como se encontra enrolado na essência, tal
como nasce no mundo envolvido da essência, idêntico
à eternidade. O extratemporal de Proust é esse
tempo em estado de nascimento e o sujeito-artista que o redescobre.
Por essa razão podemos dizer com todo o rigor que só
a obra de arte nos faz redescobrir o tempo: a obra de arte
é o único meio de redescobrir o tempo". Ela
porta os signos mais importantes, cujo sentido está
contido numa complicação primordial, verdadeira
eternidade, tempo original absoluto. (21)
>>>volta
Quanto
ao instrumento computador (apto a dialogar rapidamente com seu
operador) Millôr o colocará a serviço da captação
de uma informação que o sensibiliza por algum motivo
e que ele prefere chamar de intriga. Assim, o que da realidade
cotidiana lhe é intrigante, passa a ser retrabalhado pelo
computador e impresso na revista. Mas para este registro corporificado
numa revista ter valor de intriga (ou valor de informação)
também para o leitor, o desenho deve igualmente tocá-lo,
intrigá-lo. Na verdade, fazendo uma alusão ao dialeto
proustiano, a "arte como intriga" desperta, de fato, a nossa memória
involuntária.
Encaramos
dezenas de páginas impressas onde fulgura a memória
voluntária, que segundo Samuel Beckett "... não
é memória, mas simples consulta ao índice
remissivo do Velho Testamento do indivíduo... Apresenta-nos
um passado monocromático. As imagens que escolhe são
tão arbitrárias quanto as escolhidas pela imaginação
e igualmente distantes da realidade... O material que fornece
não contém nada do passado; uma vez removida nossa
ansiedade e nosso oportunismo, não passa de uma projeção
uniforme e enevoada isto é, nada". (22)
De repente os olhos encontram algo explosivo, "uma deflagração
total, imediata, deliciosa", que em sua chama "consumiu o Hábito
e seus labores e em seu fulgor revela o que a falsa realidade
da experiência não pôde e jamais poderá
revelar o real". (23) .
Por
mais restrições que Millôr Fernandes aponte
na arte abstrata, quanto mais próximos da abstração
são os seus desenhos, maior a diluição operada
na fronteira arte e jornalismo obtida pela série "Arte
é Intriga". Em meio a uma linguagem escrita desgastada
pelas referências, que ao invés de reveladora congela
e paralisa os fatos, cujas tendências deveria reportar,
o traço digital de Millôr é registro único
e presente.
Na
palavra metafísica, o pintor De Chirico não
via nada de tenebroso. "E a mesma tranqüilidade e insensata
beleza da matéria que me parece metafísica", afirmava.
Digamos que Millôr levou o tema literalmente "aos jornais"
na "Proposta para Discussão Metafísica sobre a Inutilidade
de Tudo ou Qualquer Coisa":
A
luz brilhante de um sol que não aquece, iluminando
flores que não cheiram, refletidas num rio que não
corre. Na paisagem pintada, um pássaro imóvel
canta uma canção inaudível numa sombra
sem frescura. A arte é isso! A arte é Intriga!
Mas
assim continuaríamos na representação ou,
quando muito, diante de alguns signos sensíveis da memória
involuntária que, adverte Deleuze, "são da vida
e não da arte...representam apenas o esforço da
vida para nos preparar para a arte e para a revelação
final da arte". (24) Há algo ainda mais intrigante
do que um meio de exploração da memória voluntária.
Repete infinitamente mas parece não ter original:
AMBOS
GÊMEOS,
DIREITO-AVESSO
CASAL
OU BIFURCAÇÃO
PLÁGIO,
FRAUDE, DUPLICATA
ECO
E SIMULAÇÃO
DUPLO,
TRANSLADO, SOMBRA
O
DOBRO OU OUTRA PORÇÃO
PAR,
XIPÓFAGOS, CóPIA,
NUM
ESPELHO TRAIÇÃOMICRO, FAX, XEROX, VIVER É
REPETIÇÃO
>>>volta
Referências:
(1)Millôr
Fernandes, "Pela demarcação da terras de Ipanema",
in Revista de Domingo do Jornal do Brasil, ano 15, nº
764, 23/12/90, p.14.
(2)Aqui
Millôr Fernandes refere-se a Marcel Proust (1871-1922).
(3)Millôr
Fernandes, op. cit., p.14.
(4)A
mostra coletiva "Jogo de Memória" ficou na Galeria Montessanti
em São Paulo de 4 a 29 de abril de 1989. Além
de Millôr, participaram os seguintes artistas plásticos:
Grassman, Iberê Camargo, Darel, Wesley Duke Lee, Flávio
Shiró e Flávio de Carvalho.
(5) Millôr
refere-se à terceira exposição dos seus desenhos
realizada na Galeria Grafitti, no Rio de Janeiro, em maio de 1975.
(6)
Roberto Marinho de Azevedo, "Sou apenas um humorista", in
Veja, 28/05/75, p.4.
(7)
Depoimento ao programa "Roda Viva" da TV Cultura de São
Paulo, em abril de 1989.
(8)
Hamilton Ribeiro, "Esse Millôr é louco?", in Realidade,
dezembro de 1970, p.107.
(9)Desenhos
humorísticos de Millôr Fernandes, in Correio da
Manhã, 29/08/57.
(10)H.Ribeiro,
op. cit., p.17.
(11)Millôr
Fernandes, "Millôr no Pasquim". São
Paulo, Círculo do Livro, 1977, p.15.
(12)Idem,
ibidem, p.15.
(13)Millôr
Fernandes, Hai-Kais. Rio de Janeiro, Editora Nórdica,
1986.
(14)Henri
Bergson, Le Rire. 97a ed., Paris, Presses Universitaires
de France, 1950, p.97.
(15)Idem,
ibidem, p.97.
(16)
Idem, ibidem, p.98.
(17)Idem,
ibidem, p.20.
(18)H.Ribeiro,
op. cit., p.109.
(19)Depoimento
de Millôr Fernandes prestado em 21/11/90 durante o "Iº
Encontro Latino-Americano de Humor Brasil-Argentina" ocorrido
no Memorial da América Latina em São Paulo.
(20)Idem
item nº19.
(21)Gilles
Deleuze, Proust e os Signos. Rio de Janeiro, Editora Forense
Universitária, 1987, pp.46-7.
(22)Samuel
Beckett, Proust. Porto Alegre, L&PM Editores, 1986,
p.25.
(23)Idem,
ibidem, p.26.
(24)G.Deleuze,
op. cit., pp.64-5.
Links:
Site
oficial:
http://www.uol.com.br/millor/home.htm
millôr
Frenandes na Mostra de Poesia Visual:
http://www.imediata.com/BVP/Millor_Fernandes/index.html
samba<info@imediata.com>
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