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Fachada do museu Guggenheim, em NY

   

 

"BRAZIL: BODY AND SOUL", OU A APOTEOSE DO BERÇO ESPLÊNDIDO

por Mario S. Mieli

 

O que é que o Brasil tem? O que é que o Brasil tem?


Mais do que uma mera mostra, a exposição made in Brazil exportada para o Guggenheim (ou, conforme um crítico de arte do Village Voice prefere chamar, o McGug’s) pretende ser, na realidade, um verdadeiro mostruário visual "do que é que o Brasil tem…", com direito a coro e arranjo.

– Tem santos e altares barrocos em profusão? – Tem! – Tem um monte de ex-votos? – Tem! – Tem carrancas esculturais eximiamente executadas e devidamente mal-encaradas? – Tem! – Tem o que hoje se rotula de arte plumária indígena? – Tem! – Tem vídeo de capoeira? – Tem! – Tem vídeo de candomblé? – Tem! – Tem vídeo de desfile de escola de samba? Tem, relegados nos cantinhos mais escondidos, como empregada doméstica que vê a televisão da área de serviço, mas tem! Tem artista contemporâneo escatológico? – Tem, até isso tem! – Tem balangandãs afro-exóticos mas sem se dar muita ênfase à escravidão? – Tem! Claro que tem!!!

E tudo isso apesar de que a atmosfera geral evocada pela mostra, assim como a maioria das peças nela contidas representarem prioritariamente a arte barroca brasileira. (Não teria sido mais propício fazer-se uma exposição sobre o barroco brasileiro do século XVIII, ao invés de, mais uma vez, tentar mostrar de tudo um pouco? Provavelmente, uma exposição desse tipo não se adequaria às propostas museológicas da instituição onde seria apresentada… então, porque não mostrar só a arte do Brasil no século XX? Ou o Brasil do pós-tropicalismo? Será que esses enfoques não seriam suficientes para "assombrar" os patronos do Museu?)

O serviço-da-noiva

Nesse sentido, para quem não tenha nenhuma informação sobre a história e a cultura brasileiras, através desta exposição vagante existe a possibilidade de se fazer um encontro imediato do primeiro grau com parte da produção artística desse extravagante, exótico e cornucópico país dos trópicos chamado Brasil, podendo-se contemplar alguns de seus mais variados objetos, predispostos e agrupados segundo o critério mais elementar e departamentalizado possível, um pouco como fazem os pais dos recém-casados pombinhos da "boa burguesia", que expõem ostensivamente todos os presentes de casamento com os quais foram brindados seus filhotes, em agrupamentos, nichos ou "séries de dádivas afins" – a prataria, os cristais, as baixelas, as louças, os linhos, etc… – para a admiração e êxtase dos demais convidados, os quais acabam tendo que se curvar e ficar estarrecidos com a profusão, com a variedade, com a quantidade de coisas "finas" e de "boa qualidade" recebidas pelo novo núcleo familiar…

Com relação aos vínculos entre o Brasil (ou quem resolveu representá-lo, ou dele se "apropriar") e a Fundação Guggenheim, a mostra não deixa de representar uma espécie de lance no jogo de cessões e concessões, onde o Brasil parece estar sugerindo entregar-se de "Corpo e Alma" e cuja contrapartida parece ainda não estar muito bem estipulada no contrato nupcial…

Chão de estrelas


Para hospedar a exposição (com concepção do espaço expositivo do francês Jean Nouvel – leia-se Institut du Monde Arabe), o interior do Guggenheim foi totalmente repintado de preto, e até mesmo a sua característica clarabóia foi vedada, tornando-se o Museu uma verdadeira "black box" (no sentido de utensílio de vôo que, quando encontrado, pode revelar o que foi dito, mas não necessariamente em que contexto) ou "camera oscura" (no sentido de que tratou-se mais de uma perspectiva de registro do que do registro de uma perspectiva).

Como explicar que um dos países mais solares do planeta (Brasil, terra dos 3 esses, lembram?), no imaginário de gregos e troianos, tenha ganhado a escuridão total como pano de fundo para mostrar sua arte, como se o país estivesse enterrado dentro das próprias grutas de Lascaux? Como explicar que à luz solar filtrada pela clarabóia do wrightiano teto, tenha-se preferido uma projeção de folhas levemente outonais para criar um efeito kitsch pseudo-amazônico? Mas que porcentagem da arte mostrada foi efetivamente produzida na floresta amazônica, para justificar tal folhagem no teto? O que é que o barroco mineiro ou nordestino tem a ver com a densidade das folhagens da floresta indígena? Como explicar que um dos países onde a luz natural é tão generosa e importante na definição de sua natureza, na cultura e arte de seu povo não somente não tenha sido devidamente convidada para fazer parte do festim, como tenha sido totalmente banida da representação do seu corpo-e-alma? Mergulhada na escuridão que almeja dar um toque de perfeccionismo expositivo mas que efetivamente só consegue um efeito lúgubre chegando a beirar o macabro, a espiral arquitetônica do Museu perdeu completamente o seu efeito espiralado, e o edifício inevitavelmente acabou parecendo um sepulcro descomunal.

Porque optou-se pela primazia da dramaturgia, do efeito teatral? Será que para ressaltar o dourado do olindense altar-ainda-em-construção, propondo-se mais uma vez a requentada idéia de que revestir-se de preto é sempre sinônimo de elegância – tanto no design de exposições quanto nas modelagens da moda? O resultado é que o espaço do museu parece significativamente reduzido ao abrigar a monumentalidade do altar-ainda-em-construção, sem permitir que ele respire. O altar sufocante ocupa boa parte da rotunda central e dos vários andares da espiral ascendente, sem que se possa contemplá-lo a uma distância suficiente para que ele possa surtir o efeito material, artístico e espiritual necessários. E isso é deformar e desfigurar a percepção adequada da obra, como coagir uma baleia a se movimentar numa piscina doméstica. A imensa estrutura de madeira que reveste os andaimes do altar cria um sinistro efeito de caixão dourado na vertical… de urna funerária cintilante… Mais uma vez, ficou demonstrado que nem todas as des-contextualizações são boas, principalmente as que lidam com a arte barroca, tão preocupada com o espaço específico para o qual foi projetada e com a luz que promove os efeitos desejados entre esse espaço e a arte nele instalada.

Quantos anos-luz do hipertexto…

Gae Aulenti, a arquiteta e designer de espaços expositivos (Musée d’Orsay, entre outros), ao projetar alguns anos atrás a exposição sobre a Magna Grécia no Palazzo Grassi de Veneza, chocou o público mais conservador e os museólogos mais embalsamados ao propor uma leitura mais autêntica e em vários níveis de aprofundamento dos artefatos da Antiguidade Clássica exibidos. A abordagem da arquiteta distinguiu-se, pois uma mega-exposição no terceiro milênio só faz sentido quando se permite a inserção das mais recentes descobertas, opiniões e questionamentos na leitura das obras propostas, que deveriam ser alinhavadas segundo algum critério lógico, algum ponto de vista que permita relacionar os artefatos materiais ao eixo cultural e espiritual da sociedade que os gerou e em função dos quais gravitaram e gravitam. Assim, a falsa idéia de que o mundo da antiguidade clássica fosse monocromático – haja mármore branco! – foi totalmente repudiada por Gae. De fato, na realidade da época, tudo era absolutamente colorido, o mármore das estátuas dos deuses do Olimpo era pintado de cores exuberantes (Minerva era vermelha, Apolo azul, Netuno verde, etc…) e os próprios monumentos eram uma explosão de cores e nuances cromáticas. O que é mais difícil é aceitarmos ser falsa a idéia que fazemos da arte da Antiguidade Clássica – naquela época ela nunca foi vista ou vivida como a imaginamos hoje. O mesmo vale para a idéia flou, desfocada e esbatida que se fez da nossa arte.

Na mostra-mostruário do Brasil deslumbrado e alienado – por não assumir aquilo que é, excluindo o óbvio e inextirpável (a verdadeira identidade, da qual parece que se tem vergonha) e sobrevalorizando só aquilo que se crê impressionar e seduzir o cliente no mercadejo… a estética do "só para inglês ver"… (a falsa identidade embalada para exportação e… "desculpe qualquer coisa…") – a estética da profusão e do volume dos objetos apresentados se contrapõe à carência de um texto que proponha uma nova leitura dos objetos da nossa cultura material, à ausência de uma reinterpretação necessária diante dessa fartura criativa, à falta de um ponto de vista específico que a mostra deveria demonstrar, revelando a trama de como essa arte evoluiu, ilustrando como uma das especificidades dessa arte está justamente na busca de um cancelamento das fronteiras entre as culturas e etnias tão diversas que a compõem, entre o passado e o presente e, ao interior da própria criação, no traquejo entre as múltiplas mídias e formas de expressão artísticas. Nada facilita o entendimento de como as diferentes culturas se interpenetraram, de como estão inter-relacionadas, de como foi e continua sendo falsa a leitura meramente eurocêntrica das demais civilizações e, portanto, da extrema importância devida a certos artistas e movimentos nacionais no cenário cultural e artístico internacional. Importância essa que está longe de ser conhecida e, muito menos, reconhecida, a nível intra e internacional.

Não basta vermos mais uma vez certas obras de certos artistas como Tarsila, por exemplo. O que é importante é assumirmos o fato de que mulheres artistas brasileiras, nas décadas de 10 e de 20, foram precursoras em muitos níveis – como mulheres ousando ser artistas, como artistas ousando desafiar o repertório acadêmico vigente no país, e como brasileiras precursoras, antecipando a importância da mulher na arte muitas décadas antes do que ocorreu em muitos dos países altamente mais "desenvolvidos".

A mesma coragem deveria ecoar com relação a outros movimentos ou artistas que, por si mesmos, equivalem a todo um movimento. Não basta expormos algumas esculturas de Rubem Valentim sem relacioná-las à riqueza semiológica das invocações gráficas tradicionais dos orixás. Não basta mostrarmos Arthur Bispo do Rosário e Hélio Oiticica sem tecermos qualquer tipo de reflexão sobre quais são os padrões recorrentes em nossos momentos artísticos mais geniais, padrões esses que deveriam ter sido o arcabouço conceitual de uma exposição de tal envergadura. E, sobretudo, não basta continuarmos a negar os traços de personalidade que nos distinguem como cultura e civilização, tentando sempre encaixá-los dentro de modelos de percepção e compreensão alienígenas.

Além da ausência de luz física, o que oprime é a ausência da luz de um pensamento que identifique, explore e relacione algumas dessas qualidades específicas de nosso gênio criativo, ao menos para justificar a "simplicidade" presunçosa do título "corpo e alma".

Para onde foi a leveza de nossa expressão inventiva? (Ela foi tratada com uma superficialidade indelicada, já que a mera aglomeração de artefatos sem um esboço de alinhavo torna o todo um tanto quanto pesado.) Para onde foi a nossa propensão para o humor, que nos distingue e civiliza, às vezes, de modo "selvagem", "arisco" e até mesmo "antropofágico"? Para onde foram as armas criativas de que dispomos como povo e nação – o dom do improviso, do repente, da jinga, da recriação do mundo num castelo de areia? E a inventividade que se consubstancia com a utilização dos materiais mais pobres e precários (o luxo do lixo), quando a carência nos impossibilita o acesso a outros materiais mais nobres (o lixo do luxo)? E a benfazeja tendência de não hesitarmos manifestar a nossa própria expressividade, muitas vezes, de maneira despudorada? E a ousadia de revisitarmos nossos mitos e temáticas primordiais com uma tecnologia de ponta? E o intento de definirmos um repertório mitológico próprio? E a exacerbada curiosidade que se concretiza em experimentação original? A incomparável disposição de conciliarmos o nosso trabalho como indivíduos mas, ao mesmo tempo, em espírito de mutirão? E a mola singular e perpétua que impulsiona a nossa motivação, incitada pela ironia e, sobretudo, pela auto-ironia? E a busca "terapêutica" de uma conciliação estética pela elasticidade e pelo deboche, a inclinação para a alegria, a liberdade e a excitação, a omnipresente tendência para a ambiguidade e as sábias tentativas de harmonizá-la, a vocação e o insaciável apetite de nunca nos levarmos a sério?…

Ou seja, em que momentos específicos podemos nos orgulhar de termos sido precursores de uma sensibilidade artística específica, diferente e inovadora? Porque determinados artistas e movimentos foram e continuam sendo importantes? Porque temos tanto medo de triar o joio do trigo, e tanta inibição de valorizar o que foi realmente único e importante? Porque temos sempre que reavaliar certos talentos somente depois que algum crítico ou publicação internacional tenha dado o seu aval, o seu imprimatur? Em que momentos certas personalidades criativas nacionais efetivamente anteciparam em muitos anos ou décadas os experimentos e preocupações que se verificariam somente depois em outros lugares do mundo, como a ampliação do imaginário (re)descobrindo e enfatizando os elementos locais, a importância da experência sensorial ao lidarmos com arte, a essencialidade da performance, a consistência e coexistência do concretismo e da precariedade, a premonição da absoluta importância da natureza e da ecologia, a exploração de todas as formas de sincretismos e hibridismos, incluindo a extrapolação do uso de uma mídia única?

Até que ponto a ignorância desses aspectos é consequência de nossa própria ignorância, timidez intelectual e do fato que não sabemos que lugar ocupamos ou queremos ocupar no mundo e até que ponto é reflexo do nosso reconhecido baixo nível de autoestima e crônica dependência econômica, entre outras tantas dependências? Até que ponto queremos permanecer deslumbrados com os falsos criadores, vítimas da nossa própria fome de status e do horror a tudo o que acaba nos remetendo à nossa própria realidade? Porque preferimos mitificar, mistificar e entronizar na categoria de "clássicos" certas vacas sagradas de nossa cultura, ao invés de darmos continuidade ao questionamento e ao processo de trabalho iniciado por tantas outras vozes mais interessantes? Porque continuamos a ignorar ou nos obstinamos a relegar para o sótão do esquecimento muitos que, tratando de temas locais (ecologia, ambiente, multiculturalismo, manifestações populares, religiosas, etc…) efetivamente contribuíram para a universalidade de nosso humanismo e cultura e continuamos a idolatrar quem, oportunisticamente, se comportam e exportam como "quem ouviu o galo cantar, mas não sabe onde"? Segundo Artaud, o exótico é a angústia nacional projetada sobre o mundo. Talvez, neste terceiro milênio, o exótico não exista mais no artefato em si. Mas seguramente sobrevive muito bem na forma como esse artefato vem embalado, proposto e exposto.

Faltaram as "connections"

A indiscutível qualidade de muitas das peças expostas, o afã de mostrar aquilo que convém e dá para ser mostrado, conferindo uma pseudo-universalidade ao evento, o caráter abrangente da proposta como um todo indicam que muitos dos elementos estavam lá (exceção feita à seção de arte contemporânea, totalmente arbitrária e mais preocupada em mostrar que artistas brasileiros também estão em sintonia com a produção escatológica global…)

Na era do hipertexto, foram apresentados belos vocábulos, mas não foi feito nenhum esforço para a redação do esboço de um texto.
Faltou mostrar o nexo histórico e cultural entre esses elementos, as inter-relações, as interdependências. Faltou ressaltar e especificidade da arte de um país multicultural e multiétnico que pode representar uma verdadeira alternativa. Faltou acreditar que essa alternativa realmente existe e que ela é a única chave para ampliar a nossa capacidade de projeção para além de nossas fronteiras. Faltou a lembrança da fórmula oswaldiana do Tupi or not Tupi como senha para desentupir o engodo mental contínuo ao refletirmos sobre a nossa identidade. Faltou amor e entendimento no tratamento da própria cultura material. Faltou superar uma arrogante "timidez" intelectual e enfatizar sinceramente como, em que, quando e porque "o corpo e a alma do Brasil" manifestaram-se por meio de certos indivíduos, artistas e movimentos, materializando-se em artefatos, instalações e eventos que efetivamente deslocaram para outro nível o nosso campo gravitacional criativo. Sem a consciência e o respeito do eixo primordial, não é possível atingir-se a essência do Brasil "interior", quanto mais transcender os próprios limites e contextos geográficos, sociais, econômicos, políticos e culturais. Em outras palavras, se um grande número de elementos estava lá, entre eles, contudo, faltaram as connections…


Link:
http://www.guggenheim.org/exhibitions/brazil/index.html

 

 

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