DANÇANDO
NO TEMPLO DE DENDUR
por
Mario S. Mieli
"...
We see ancient cultural chains broken, past traditions crumble
and wonderful special characteristics wither away. Our common
memory is threatened, our soul shrivels, our creativity is stifled,
our present becomes rootless. 'He who has nothing old has nothing
new', says an Arab proverb. This past must emerge from the museums
in order to become a source of inspiration and creativity, to
become the instrument and the joy of the people..." Melina Mercouri
"
Assistimos
ao rompimento de antigos elos culturais, ao desmoronamento de
tradições do passado, e ao desaparecimento de maravilhosas
características especiais. Nossa memória comum está
ameaçada, nossa alma seca, nossa criatividade é
reprimida, nosso presente se torna desarraigado. Quem não
tem nada de antigo não tem nada de novo, diz um provérbio
árabe. Esse passado deve emergir dos museus para se tornar
uma fonte de inspiração e criatividade, para se
tornar o instrumento e a alegria do povo
"Melina Mercouri
Alguns
anos atrás se bem de que o fato poderia estar ocorrendo
hoje , em uma das aulas de um curso sobre "Economia
e Artes Plásticas" na New York University, o professor
da disciplina chegou na sala de aula e escreveu a frase seguinte
no quadro-negro:
A
atriz, e agora também ministra da cultura da Grécia
Melina Mercouri insiste que os "Elgin
Marbles" sejam devolvidos à Grécia.
Voltando-se
aos alunos (todos mestrandos e doutorandos) que compunham aquela
pequena ágora, o professor pediu que fosse feita uma votação
para apurar quem estava a favor e quem estava contra a devolução
dos Elgin Marbles, da Inglaterra para a Grécia.
Os
chamados "Elgin Marbles" compunham o friso do monumento
mais conhecido do mundo helênico: o
Parthenon de Atenas (templo sagrado dedicado à deusa
Atena, construído na Acrópole durante o governo
de Péricles, entre 447 e 432 a.C. e considerado a obra-prima
da arquitetura e artes gregas) constituindo, portanto, parte integral
do mesmo (Fídias foi o escultor responsável pelas
obras escultóricas). No começo do século
XIX (em 1806), quando a Grécia ainda não constituia
uma nação independente, o inglês Thomas Bruce,
Sétimo conde de Elgin, achou por bem retirar essas esculturas
e elementos arquitetônicos do monumento (talvez para ajudar
a preservá-los, mas certamente para não deixar de
ter uma lembrancinha original da Antiguidade Clássica),
levando-os para Londres, onde foram vendidos para o governo britânico,
que os dispôs no
British Museum (1816). Como essas importantes esculturas históricas
não foram feitas nem pelo nem para o Senhor Elgin, a Grécia,
desde então, protestou o fato de que o "recheio"
do Parthenon tenha sido levado embora pelo lorde colecionador.
Essas reivindicações se tornaram ainda mais veementes
e loquazes na voz da atriz e, posteriormente, "artivista"
(como diria Bené Fonteles) e ministra da cultura da Grécia
Melina Mercouri (1924 1994). Depois de seus protestos,
quem é a favor da devolução dessas obras
para a Grécia deixou de chamá-las Elgin Marbles
e voltou a chamá-las, corretamente, de "The
Parthenon Marbles".
Os
alunos fizeram um olhar de enfado ao serem solicitados a votar
com relação a uma questão tão "remota"
e cuja resposta parecia tão óbvia
Sim, porque
será que alguém teria a coragem de demonstrar tanta
estupidez e "anti-conformismo" perante as sacrossantas
regras museológicas do establishment não
digo conservador
. mas "conquistador"?
O
professor lançou a pergunta fatal: "Quem é
a favor do retorno dos Elgin Marbles" para a Grécia?
(Notem bem que ele usou "Elgin" e não "Parthenon".)
Ao
ver que ninguém levantou nem o dedinho mindinho, um dos
alunos estrangeiros estendeu o braço e o indicador direitos,
tal como o
Hermes de Giambologna, pronto para levantar vôo (tanto
para ficar dentro do paradigma da Antiguidade Clássica
),
não só porque acreditava sinceramente que o lugar
dos mármores é, se não no próprio
local para o qual foram especificamente construídos, pelo
menos, perto do mesmo, mas também porque o tópico
realmente merecia uma ampla e acesa discussão sobre tantos
temas ligados à cultura, à arte e à apropriação
tanto de uma como de outra pelo conquistador de plantão,
tema recorrente em toda a história da humanidade.
Naturalmente,
seja o professor como o resto dos alunos lançaram sobre
"o aluno estrangeiro" aqueles olhares mistos de pena
e desolação, onde se misturavam o desprezo pelo
seu suposto nonsense e a atitude de pena e superioridade
condescendente com a qual muitos cidadãos do chamado primeiro
mundo ficam em pose para observar um macaco exótico do
terceiro.
Para
a surpresa do "estrangeiro", uma de suas colegas, que
talvez por estar fazendo carreira num dos museus mais prestigiosos
de Nova York, se sentiu com a autoridade de falar pelo grupo todo,
dignando-se a lhe dirigir a palavra e tomando para si a incumbência
de "iluminá-lo" com uma pergunta, feita no mesmo
tom didático-repressivo com que os guias de tours educativos
falam para os escolares visitantes do 1º grau: "É
proibido tocar nas obras
não cheguem perto dos quadros
cuidado para não atrapalhar os turistas
"
Assim,
começou seu sermão, indignada:
Como
você pode defender uma opinião dessas
quer
dizer que "nós" cuidamos daquelas obras e "nós"
as preservamos por tantos e tantos anos e agora vamos ter que
devolver assim, sem mais nem menos? É um absurdo o que
você está dizendo. É ridículo. Absolutamente
ridículo. Imaginem só
devolver os EEEELLLLGGGIIIINNNN
MARBLES
E isso sem falar da importância do intercâmbio
cultural que deve existir sempre entre os países e as
culturas diferentes. Justamente "nós", que
somos os herdeiros diretos de toda a cultura ocidental, e portanto,
da Antiguidade Clássica
(No que os demais alunos
deram sinal de vida, concordando com o movimento da cabeça
e bisbilhotando adjetivos não muito elogiosos, enquanto
olhavam de viés para o aluno estrangeiro, o símio
pró-Melina.)
Este
respondeu: Você diz nós, nós, nós
Sei que você é americana e não é inglesa.
Portanto, o que você quer dizer exatamente com "nós"?
"Nós" quem? "Nós" o quê?
Os mármores não estão no Metropolitan de
Nova York, mas no British Museum de Londres. Portanto, seria melhor
se você usasse a palavra "eles"quando se refere
tanto aos gregos quanto aos ingleses. Se o "nós"
que você tanto usa se refere a "nós museus",
instituições culturais, gostaria só de saber
o que o British Museum ou a Inglaterra deram à Grécia
em troca dessas esculturas, tanto para aprofundarmos a questão
do intercâmbio cultural que você mencionou. Quantos
Turners ou Gainsboroughs ou quantas pedras de Stonehenge foram
doados à Grécia em troca dos frisos do Parthenon?
Depois
de um longo e estéril bate-boca de argumentos falaciosos
e unilaterais, durante o qual o "estrangeiro" assegurou
aos adversários de que estava falando especificamente da
devolução dessas obras e não da devolução
ao local de origem (e talvez de direito) de todo o patrimônio
artístico e cultural da humanidade que se encontra disperso
e em posse de outros países, culturas e civilizações
que não têm nada a ver com os de origem, nosso estrangeiro
acabou fazendo uma pergunta cuja resposta já estava adivinhando
de antemão:
Mas
me diga uma coisa, se você pudesse comprar a
Pirâmide de Quéops do Egito e colocar atrás
do Metropolitan Museum, bem no meio do Central Park, você
faria isso?
É claro, é óbvio que sim, respondeu a "aluna
e profissional do Metropolitan". Com a pirâmide aqui,
eu não precisaria ir ao Egito para vê-la, além
de estar trazendo mais uma valiosa atração turística
para o Museu, para o Parque e para Nova York.
Nessa
altura, mais do que ciente do abismo insuperável que os
separava, sobre o significado da palavra civilização,
sobre a especificidade cultural e a unicidade do valor de um artefato
ou monumento em termos do contexto material no qual e para o qual
foi criado
o "estrangeiro" fez a sua última
pergunta
não tanto por provocação gratuita,
mas para testar se havia um mínimo de coerência na
pseudo-lógica que não admite a existência
de qualquer outro valor a não ser o dos benefícios
da capitalização monetária instantânea.
Na mesma época, estava ocorrendo uma disputa entre os estados
de Nova York e de Nova Jersey, sobre qual dos dois efetivamente
detinha a posse de Ellis Island, a ilha na qual se encontra a
estátua da Liberdade. Apesar de ser símbolo de Nova
York, a estátua se encontraria sob a jurisdição
do estado de Nova Jersey. Prosseguiu:
O
que aconteceria se algum multi-bilionário de outro estado
(do Texas, digamos), encasquetasse de querer comprar a cabeça
da estátua da Liberdade, e para tanto, ser necessário
cortar a cabeça da mesma para que ele possa levá-la
para casa guardadas as devidas proporções
históricas e artísticas, mas tendo sempre presente
a fabulosa montanha de verdinhos que ofereceria
segundo
o seu raciocínio deveríamos considerar seriamente
a proposta, não é mesmo?
Nesse
momento, as cabeças presentes na sala começaram
a pender e a balançar convulsivamente, e "o estrangeiro"
se sentiu como aqueles pacientes cujo estado de saúde é
tão grave que toda a junta médica nem sequer tem
mais palavras para descrever a situação do agonizante
É
claro que a Pirâmide de Quéops ainda está
em Gizeh, no Egito e não no Metropolitan, nem no Parque
Central, nem em Nova York, ora!!!
A
pirâmide não veio, mas nem por isso deixamos de encontrar
naquele local um outro templo egípcio, sensacional e significativo:
o Templo
de Dendur, que do Nilo foi transferido para o Hudson. Esse
maravilhoso templo egípcio, construído na Núbia
em cerca de 15 a.C., foi doado aos Estados Unidos
pelo Egito em 1965, quando foi construída a mega-represa
de Abu Símbel, que requereu o alagamento de grandes extensões
de terras densas de tesouros arqueológicos. Em 1967, esse
templo milenar edificado para Ísis foi destinado ao Metropolitan
Museum, onde se encontra hoje.
Ah,
estava esquecendo o mais importante
o Templo de Dendur pode
ser visitado por todos, mas "alugado" somente pelos
happy few para festas, casamentos e recepções,
por uma moderada soma de várias dezenas de milhares de
dólares, podendo transformar-se camaleonicamente
num sugestivo cenário para um exótico buffet ou
numa pitoresca e animada discoteca, conforme o gosto do cliente!!!
Só
não garanto a bênção de Ísis
nem o endosso do nosso aluno estrangeiro, o tal do símio
pró-Melina, quanto ao resto, divirta-se, ou como se diz
por aqui
Have fun!!!
Referências/Hipertexto:
Melina
Mercouri (1925 1994)
http://www.culture.gr/2/20/melina.html
Filmografia
de Melina Mercouri:
http://www.imdb.com/Name?Mercouri,+Melina
Foto
de Melina Mercouri com Kazantzakis:
http://www.historical-museum.gr/kazantzakis/asym/asym36.html
Melina
Mercouri Foundation
http://www.culture.gr/4/41/411/e41101.html
Apelo
recente para a devolução dos Parthenon/Elgin Marbles
para a Grécia, por ocasião dos Jogos Olímpicos
de Atenas em 2004:
http://www.ananova.com/news/story/sm_258509.html
Elgin
Marbles/Parthenon Marbles
http://www.greece.org/parthenon/marbles/
http://www.encyclopedia.com/articles/04048.html
Texto
de Jules Dassin sobre os Mármores do Parthenon:
http://www.culture.gr/4/41/411/e41106.html
Parthenon
de Atenas:
http://buildings.greatbuildings.com/The_Parthenon.html
http://www.encyclopedia.com/articles/09874.html
http://www.mcdougallittell.com/whist/netact/U3/U3frame.htm
http://www.pbs.org/empires/thegreeks/
The
British Museum
http://www.thebritishmuseum.ac.uk/compass
Giambologna
Hermes
http://www.thais.it/scultura/sch00301.htm
Pirâmides
do Egito
http://www.civilization.ca/civil/egypt/egypt_e.html
http://saxakali.com/COLOR_ASP/historymaf4.htm
http://www.virtual-egypt.com/
http://www.ancientegypt.co.uk/pyramids/
Estátua
da Liberdade
http://www.si-web.com/Statue.html
http://www.nps.gov/stli/
http://www.nyctourist.com/liberty1.htm
Templo
de Dendur
Planta
do Templo:
http://www.uni-wuerzburg.de/aegyptologie/ritualszenen/Beispiel.html
Fotos/desenhos:
http://www.angelfire.com/ks/mayas/dendur.html
The
Metropolitan Museum of Art Templo de Dendur
http://www.metmuseum.org/collections/view1.asp?dep=10&item=68%2E154
Festa
no Templo de Dendur
http://www.cassworld.com/Metro12798.htm
Outros
casos arquelógicos onde o dinheiro prevaleceu sobre a importância
cultural e histórica dos artefatos/monumentos:
http://www.tamu.edu/anthropology/newsarch.html
http://www.archaeologica.org/NewsPage.htm
samba<info@imediata.com>
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