:::::::::::::::::::::::::::: arte, cybercultura e tecnologia::::::::::::::::::::::

   

 

O FUTURO DAS ABELHAS

 

"Marron e Negro", de Pazé, apresentado na "Sill Life/Natureza Morta"

 

Por Silvio Mieli

Melissa é uma palavra de origem grega, mélissa, que significa abelha. É também a designação científica da planta erva-cidreira, a melissa officinalis, assim chamada por exercer forte atração sobre as abelhas. Por fim, Melissa é o nome de uma popular sandália de plástico brasileira, lançada há 25 anos pela empresa Grendene.

Para comemorar a longevidade da tal sandália, a empresa resolveu montar a exposição Plastic.o.rama Made in Brasil, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, no Parque do Flamengo, de 17 a 27 de março. A curadora da mostra, Erika Palomino, disse que para celebrar a data não bastava apenas contar a história da Melissa. "Era necessário encontrar uma maneira de refletir o incomensurável valor emocional relacionado ao produto", explicou no site da mostra. Alguns destes valores: diversão, moda, juventude, expressão pessoal, modernidade, tecnologia, criatividade.

A partir da constatação de que o calçado, legítimo ícone pop tupiniquim, faz parte da cultura brasileira "desde que Alexandre Grendene mudou os rumos da moda no país", foram contatados 100 convidados para transformar as sandálias em 90 "obras de arte", dignas de serem expostas num museu de arte moderna.

Segundo Erika Palomino, a Melissa foi "desenhada, rabiscada, derretida, colorida, embrulhada, escondida, pendurada. Recebeu strass, paetê, pluma, pérola, mas também chifre, adesivo, gesso, gelo. Foi para o riacho, para a praia, para a piscina, virou casca de coco, carrinho de autorama, plantinha no pé, globo de espelho, luminária, headphone, letra de música, colar, carimbo, compota. Ficou de cabeça para baixo, foi alvo de declarações de amor e da perseguição das fãs e, finalmente, chegou aos pés de um dos homens mais importantes do Brasil" (referindo-se ao publicitário Washington Olivetto, fotografado languidamente com um par de Melissas).

O objetivo da mostra é inequívoco. "Plastic.o.rama traça, portanto, um grande panorama de quem é legal, dos criativos de todas áreas, fazendo mais do que uma retrospectiva, apontando caminhos para o futuro: para o plástico, para a Melissa, para o Brasil", sentencia ufanista a curadora Erika Palomino (ao lado do designer Giovanni Bianco).

O futuro é agora

Configuram-se cada vez mais claras as estratégicas do grande capital e da tecnologia, que passaram a exercer o seu controle sobre a esfera do virtual, do imaginário simbólico e, portanto, da arte e da cultura. As altas finanças investem no processo de virtualização das próprias linguagens artísticas e deixam as atualizações para os fotógrafos, estilistas, jornalistas, publicitários, cenógrafos, arquitetos, DJs, videomakers, diretores de cinema e de comerciais, performers, artistas plásticos, ilustradores, cantores, maquiadores, grafiteiros e chefes de cozinha da moda. Eles completam o serviço.

Se Giorgio Armani já expôs no Guggenheim de New York (que por essas e outras recebeu o apelido de Mac Guggg), soa muito "natural" a Grendene ocupar o MAM do Rio, guardadas as devidas proporções. Assiste-se, assim, a um processo de transformação dos museus em vitrines de produtos fashion — nada mais conservador e reacionário — e, por outro lado, coloca-se em prática uma estratégia de naturalização de certos ícones do consumo, que adquirem, após uma releitura por parte das celebridades do estilo, uma conotação, digamos, naturalmente conceitual.

Entretanto, trata-se de conferir um estatuto artificialmente clássico à mercadoria, que, no caso da sandália Melissa, chega ao museu transformada numa "natureza morta" banalizada, despotencializada, capaz somente de revelar os seus componentes de fetichização mais baratos. Além disso, a tentativa de imprimir ao evento um sentido "natural" alia-se às experiências que relacionaram a sandália a produtos orgânicos (Melissa com chifres, Melissa imersa no chocolate, Melissa canteiro de plantas, marca de Melissa nos pés…).

 

Ressalte-se que o problema não é o uso do material plástico, muito menos a presença do design de moda em território consagrado às artes. O que impressiona é a forma absolutamente forçada (via markting cultural) através da qual a sandália interage com os produtos orgânicos, com o intuito de naturalizá-la e dotá-la de uma áura telúrica ou, como disse a curadora Erika Palomino, de um "incomensurável valor emocional". Assim, entre o museu que se entrega ao consumo e a naturalização da sandália de plástico, reverbera apenas uma emoção artificial (pouco espontânea, forçada e fingida), mas sem artifício (engenhosidade).

Até novembro do ano passado esteve em cartaz a mostra "Sill Life/Natureza Morta" na galeria de Arte do Sesi em São Paulo. Dentre os vários artistas brasileiros representados -- Regina Vater, Beatriz Milhazes, Leda Catunda, Alex Flemming...--, um deles aceitou o desafio do tema "natureza morta" de forma particularmente criativa. O artista Pazé reconstituiu uma colméia de abelhas a partir de canudos de plástico. O visitante só se dava conta de que a colméia era totalmente artificial quando se aproximava muito da obra e percebia os milhares de canudos marrons e negros que a compunham. Pazé, de forma clara e direta, ao mesmo tempo artesanal e engenhosa, simples e complexa, questionou as fronteiras entre o natural e o artificial e mostrou que é possível enfrentar o panorama dócil, adocicado e melífuro da arte institucional com boa dose de ousadia e talento.

Em tempo. Há exatos quarenta anos o MAM do Rio abrigou a exposição Opinião 65 (Aguilar, Antonio Dias, Waldemar Cordeiro, Hélio Oiticica, Vergara, Gerchman, Flávio Império, dentre outros). Opinião 65 foi a vertente plástica de um amplo movimento cultural, inspirado no teatro popular e no Cinema Novo. Ceres Franco, crítica de arte e uma das curadoras da Opinião 65, registrou o seguinte no catálogo original: "A jovem pintura pretende ser independente, polêmica, inventiva, denunciadora, crítica -- social e moral. Ela se inspira tanto na natureza urbana imediata como na própria vida com seu culto diário de mitos". Na época, Hélio Oiticica foi fotografado languidamente trajando um parangolé.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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