Vimos imagens
terríveis, terrificantes e terrivelmente espetaculares. Já
as conhecemos de situações diversas, no imaginário
de Hollywood, na fábrica do cinema da catástrofe, e a
familiaridade com essas imagens as torna ainda mais insuportáveis.
O atentado como um todo foi concebido pensando nas imagens, como um
"storyboard" de tudo o que aconteceu, a cronologia de um filme
cheio de seres humanos vivos, verdadeiros, no ato de morrer. A preparação
e o planejamento dos atentados levaram em conta, de forma maníaca,
o efeito comunicativo da televisão; nunca antes a precisão
dos eventos e a sua sucessão havia atingido um efeito tão
estupefaciente, que nos deixasse tão sem palavras.
Além disso, a língua das imagens é compreensível
universalmente e fez -se isso é possível- os eventos ficarem
ainda mais ardentes. Entendi uma coisa incrível: não existem
limites, não existem mais as fronteiras que acreditávamos
garantir a tranquilidade de nossas vidas; destruir tantas vidas de um
só golpe é um ato de criminosos assassinos, executado
por pessoas que escolheram se tornar isso, que pretendem falar em nome
de um mundo que se perdeu, lançar um apelo por parte daqueles
que correm o risco de desaparecer.
Os rostos desorientados e desesperados das vítimas do atentado
não são diferentes dos rostos dos milhões de desesperados
que vi todos esses anos, conscientes de que a vida não tem nada
mais a lhes oferecer, de que o mundo os deixou para trás, decidiu
pela sua perdição.
A foto da mulher coberta de poeira, envolta em uma nuvem amarela, buscando
refúgio após o atentado, me remete às imagens dos
trabalhadores na extração de enxofre na Indonésia,
escravos, por uns poucos trocados, de uma situação que
os excluiu.
Não tenho comentários para as imagens das pessoas que
se jogaram do World Trade Center; fiquei totalmente chocado com o que
vi. Microscópicos seres humanos desesperados, que caem de uma
construção gigantesca, maciça, aparentemente impossível
de derrubar, desmoronada em poucos minutos.
Mulher
coberta de poeira busca refúgio no lobby de um prédio
(Stan Honda/France Press)
Olhando as imagens, naturalmente pensei nos meus "irmãos"
fotógrafos, empenhados em documentar essa tragédia. Fazer
fotografias em situações como essa é extremamente
difícil, e os fotógrafos se arriscam, eles mesmos, muito
mais do que se imagina, em seu trabalho. É preciso trabalhar
velozmente, sintetizando um fato dessas proporções em
poucas imagens, escolher os enquadramentos: tudo isso requer uma prontidão
e uma presença de espírito excepcionais.
Os fotógrafos são comumente acusados de querer protagonizar,
colocar-se em evidência, mas são testemunhas; muitas vezes,
as únicas testemunhas no local. Esses dramas, queiramos ou não,
são o espelho da sociedade, e os fotógrafos levam esse
espelho a todos.
No mundo de hoje, não existe mais proteção, como
a que imaginamos nas décadas passadas; mas, para milhões
de seres humanos pertencentes àquele mundo que se optou por deixar
para trás, de quem se roubou a dignidade, essa proteção
já não existe há muito. Tudo se nivelou. O olhar
atônito nas fotos de Colin Powell, de Chirac, de Bush, de Arafat
deixa ver o quanto estávamos todos despreparados para este evento.
Bush erra ao falar de vingança; estamos mais para um momento
de reflexão, uma reflexão impingida.
O poder exercido diariamente no interior de um sistema de certezas foi
destruído, aquilo que se acreditava eterno não o é
mais. As causas de tudo isso vêm de longe.
Começou uma nova era, e devemos vivê-la fazendo um esforço
de elaboração, de pensamento, recolocando em discussão
o que acompanha, de modo habitual, as nossas vidas. O equilíbrio
preexistente evidentemente não era tanto, e devemos nos esforçar
para construir um novo, a partir de outros valores, usando um profundo
repensar.
Os agentes do atentado o fizeram tendo às costas uma grande organização,
mas o que é mais dramático é que milhões
de pessoas se sintam representadas por tudo isso. Para aqueles que não
dão mais valor à vida, esses acontecimentos não
são diferentes do que houve em Ruanda ou em dezenas de outros
lugares do mundo. A divisão do risco faz com que se diminuam
as desigualdades: a desestabilização parece possível
a cada momento. A vida que uma multidão de pessoas do Terceiro
Mundo é obrigada a viver, acostumada ao absurdo, faz mais compreensível
e aceitável aos seus olhos um evento baseado na lógica
do absurdo.
Um
mutilado, v’tima da guerra, anda com muletas em meio ˆs ruinas da avenida
Jade Maiwan. Cabul, Afeganist‹o, 1996. Sebastião Salgado
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Texto do fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado publicado
originalmente no jornal italiano "La Repubblica"
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Tradução de Francesca Angiolillo
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