A administração norte-americana é uma besta sedenta de sangue

 

 


Harold Pinter

O texto a seguir é parte do discurso pronunciado pelo autor, Prêmio Nobel de Literatura de 2005, ao receber um título honorário da Universidade de Turim, na Itália, e foi publicado pelo Daily Telegraph de Londres no dia 11 de dezembro de 2002.

Tradução Imediata

No começo do ano fui operado de câncer. A cirurgia e seus efeitos me causaram um pesadelo. Senti que não podia nadar embaixo d’água em um interminável, obscuro e profundo oceano. Entretanto, não me afoguei, e me alegro de estar vivo.

Apesar disso, fiquei sabendo que emergir de um pesadelo normal era entrar em um pesadelo público infinitamente mais avassalador — o pesadelo da histeria, da ignorância, da arrogância, da estupidez e da beligerância norte-americanas; a nação mais poderosa que o mundo conhece, conduzindo uma guerra contra o resto do mundo. "Se não estão conosco, estão contra nós", disse o presidente George W. Bush. Disse também: "Não permitiremos que as piores armas do mundo permaneçam nas mãos dos piores líderes do mundo." Como você fala bem. Olhe-se no espelho, colega. Esse líder é você.

Os Estados Unidos estão desenvolvendo neste momento avançados sistemas de "armas de destruição em massa" e se preparam para usá-las onde quer que acreditem que seja necessário. Eles têm mais armas que as que pode juntar o resto do mundo. Eles rechaçaram todos os acordos internacionais sobre armas químicas e biológicas, vetando a inspeção de suas próprias fábricas de armas. A hipocrisia por trás de suas declarações públicas e de suas ações é quase uma piada.

Os Estados Unidos crêem que as 3.000 mortes de Nova York são as únicas mortes que contam, as únicas mortes que importam. São mortes "americanas". As outras mortes são irreais, irreais, abstratas, sem nenhuma conseqüência, segundo eles. As 3.000 mortes provocadas por eles no Afeganistão nunca são mencionadas. As centenas de milhares de crianças iraquianas, mortas devido às sanções norte-americanas e britânicas, que as privaram de medicamentos essenciais, nunca são mencionadas. Os níveis de radiação no Iraque são alarmantes. Nascem bebês sem cérebro, sem olhos, sem genitais. Onde vão os ouvidos, têm a boca ou o reto, e o que sai desses orifícios é sangue. As 200.000 mortes causadas em Timor Leste em 1975 pelo governo indonésio, que os Estados Unidos inspiraram e apoiaram, nunca são mencionadas. As 500.000 mortes na Guatemala, no Chile, em El Salvador, na Nicarágua, no Uruguai, na Argentina e no Haiti, em ações apoiadas e subsidiadas pelos Estados Unidos, nunca são mencionadas. Os milhões de mortos no Vietnã, em Laos e no Camboja, nunca são mencionados. O padecer desesperado dos palestinos, fator central da crise mundial, é apenas mencionado. Mas que má interpretação do presente e que perversão da história é esta! Os povos não esquecem. Não esquecem a morte dos seus, não esquecem a tortura e a mutilação, eles não esquecem a injustiça, não esquecem a opressão, não esquecem o terrorismo das grandes potências. Não só os povos não esquecem, como contra-atacam.

A atrocidade cometida em Nova York era previsível e inevitável. Foi um ato de retaliação contra as manifestações sistemáticas do terrorismo de estado exercido pelos Estados Unidos ao longo de muitos anos, em todas as partes do mundo.

Na Grã Bretanha, o público recebeu a advertência de ficar vigilante e preparado para potenciais atos terroristas. A própria linguagem que se usa é absurda. Como se materializará essa vigilância pública? Usando um cachecol sobre a boca para filtrar os gases venenosos? Entretanto, qualquer ataque terrorista seria inevitável conseqüência da desprezível e vergonhosa submissão de nosso Primeiro Ministro aos Estados Unidos. Parece que já foi interceptado um ataque de gás venenoso no metrô de Londres. Porém, esse tipo de ação ainda poderia ser perpetrado. Se ocorresse um ataque de gás que os matasse, toda a responsabilidade recairia sobre o nosso Primeiro Ministro. É desnecessário esclarecer que o Primeiro Ministro não viaja de metrô.

A guerra contra o Iraque constitui, de fato, um plano de assassinato premeditado contra milhares de civis para, supostamente, liberá-los de seu ditador. Os Estados Unidos e a Grã-Bretanha prosseguem um curso de ação que somente conduzirá a uma escalada de violência através do mundo e à catástrofe. É óbvio, todavia, que os Estados Unidos estão inflados de desejo de atacar o Iraque. Creio que eles o farão, não só para tomar posse do petróleo iraquiano, como também porque a atual administração norte-americana é, nestes momentos, uma besta sedenta de sangue. As bombas são o seu único vocabulário. Muitos norte-americanos estão horrorizados frente à postura do seu governo, mas parecem estar impotentes.

A menos que a Europa reuna a solidariedade, a inteligência, o valor e a vontade para resistir ao poder dos Estados Unidos, a Europa mesma se fará merecedora da declaração de Alexander Herzen - "Nós não somos os médicos, nós somos a enfermidade."

Harold Pinter, um dos mais renomados dramaturgos contemporâneos de língua inglesa, acaba de ser apontado como ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 2005.

Site do autor:

http://www.haroldpinter.org/home/index.shtml

 

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