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O que chamamos "paz" é pouco mais que capitulação ao golpe corporativo |
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Arundhati Roy 3 de novembro de 2004 Publicado pelo Sydney Morning Herald (Austrália) Esta é uma síntese editada da conferência feita por Arundhati Roy por ocasião do Prêmio da Paz de Sydney de 2004 (2004 Sydney Peace Prize) no Seymour Cente,r em 2 de novembro de 2004. Tradução Imediata |
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Às vezes, algumas frases feitas contêm uma verdade. Não pode haver paz sem justiça. E sem resistência, não haverá justiça. Atualmente, não se trata meramente da justiça em si, mas da própria idéia de justiça que está sob ataque. A agressão contra setores frágeis e vulneráveis da sociedade é tão completo, tão cruel e tão astuto que o absoluto atrevimento desse ataque tem corroído até a nossa definição de justiça, forçando-nos a abaixar os olhos e a diminuir as nossas expectativas. Mesmo entre os bem intencionados, o magnífico conceito de justiça tem sido gradualmente substituído com o muito mais reduzido e muito mais frágil discurso dos "direitos humanos". Trata-se de uma mudança alarmante. A diferença é que as noções de igualdade e de paridade têm sido esvaziadas e retiradas da equação. É um processo de atrito. Quase inconscientemente, começamos a pensar em justiça para os ricos e em direitos humanos para os pobres. Justiça para o mundo corporativo, direitos humanos para afegãos e iraquianos. Justiça para as castas mais altas da Índia, direitos humanos para os dalits e adivasis (quando muito). Justiça para os australianos brancos, direitos humanos para os aborígines e imigrantes (a maioria das vezes nem isso). Está ficando cada vez mais claro que a violação dos direitos humanos é uma parte inerente e necessária do processo de implementação de uma estrutura política e econômica coercitiva e injusta no mundo. Crescentemente, as violações contra os direitos humanos estão sendo mostradas como uma falha infeliz, quase acidental, de um sistema político e econômico que seria, de outro modo, perfeitamente aceitável. Como se essas violações fossem um pequeno problema que pode ser varrido do mapa com um pouco mais de atenção de parte de alguma organização não governamental. É por isso que em áreas de grandes conflitos na Caxemira e no Iraque, por exemplo os profissionais de direitos humanos são vistos com um alto grau de suspeita. Muitos movimentos de resistência de países pobres, os quais estão lutando contra grandes injustiças e questionando os princípios de base do que constitui "liberação" e "desenvolvimento", consideram as organizações não governamentais de direitos humanos como missionários contemporâneos que vieram aparar as arestas mais feias do imperialismo para desativar a ira política e manter o status quo. A Austrália reelegeu John Howard há apenas poucas semanas. E foi ele que, entre outras coisas, conduziu esta nação a participar da invasão e ocupação ilegais do Iraque. Seguramente, essa invasão entrará na História como um dos momentos de maior covardia de todos os tempos. Foi uma guerra na qual um bando de nações ricas, armadas com armas nucleares suficientes para destruir o mundo inúmeras vezes, cercaram uma nação pobre, falsamente acusada de ter armas nucleares, usaram as Nações Unidas para forçar o seu desarmamento, invadiram-na, em seguida a ocuparam e agora estão no processo de vendê-la. Falo do Iraque, não porque todo o mundo está falando nisso, mas porque é o sinal do que está por vir. O Iraque marca o início de um novo ciclo, oferecendo-nos a oportunidade de observar a conspiração corporativo-militar que passou a ser conhecida como o "império" em obras. No novo Iraque, tiraram-se as luvas. À medida em que se intensifica a batalha pelo controle dos recursos do mundo, o colonialismo econômico, por meio da agressão militar oficial, está voltando em cena. O Iraque é a culminação lógica do processo de globalização corporativa no qual se fundiram o neocolonialismo e o neoliberalismo. Se pudéssemos dar uma espiadela através de uma fresta da espessa cortina de sangue, veríamos impiedosas transações ocorrendo nos bastidores. Invadido e ocupado, o Iraque teve que pagar US$ 200 mihões (US $270 milhões) em "ressarcimentos" correspondentes a lucros perdidos por corporações como: Halliburton, Shell, Mobil, Nestlé, Pepsi, Kentucky Fried Chicken e Toys R Us. Isso sem contar os US$ 125 bilhões de dívida soberana, forçando o país a se voltar para o FMI e ao seu programa letal de ajuste estrutural. (Embora, no Iraque, parece que não tenham sobrado tantas estruturas passíveis de ajuste.) Dessa forma, o que significa "paz" neste mundo selvagem, corporativizado e militarizado? O que significa "paz" para as pessoas que vivem no Iraque, na Palestina, na Caxemira, no Tibete e na Tchetchênia ocupados? Ou para o povo aborígine da Austrália? Ou para os curdos na Turquia? Ou para os dalits e adivasis da Índia? O que significa "paz" para os que não são muçulmanos em países islâmicos, ou para as mulheres, no Irã, na Arábia Saudita e no Afeganistão? O que significa "paz" para os milhões de pessoas que estão sendo desarraigadas de suas terras para a construção de represas e projetos de desenvolvimento? O que significa "paz" para os pobres que estão sendo ativamente roubados de seus recursos? Para eles, paz é guerra. Sabemos perfeitamente quem se beneficia com a guerra na era do império. Mas precisamos também nos perguntar quem se beneficia com a paz na era do império. Defender a guerra é criminoso. Mas falar de paz sem falar de justiça se torna a defesa de um certo tipo de capitulação. E falar de justiça sem tirar a máscara das instituições e dos sistemas que perpetuam a injustiça é muito mais que simples hipocrisia. É muito fácil culpar os pobres por serem pobres. É fácil acreditar que o mundo está sendo vítima de uma escalada de terrorismo e guerra. É isso que permite a George Bush dizer: "Quem não está conosco está contra nós". Essa é uma escolha falsa. O terrorismo não é mais que a privatização da guerra. Os terroristas são os livres mercadores da guerra. Eles crêem que o uso legítimo da violência não é prerrogativa exclusiva do estado. É uma mentira fazer uma distinção moral entre a inacreditável brutalidade do terrorismo e a carnificina indiscriminada da guerra e da ocupação. Ambos os tipos de violência são inaceitáveis. Não podemos apoiar um e condenar o outro.
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2004 Sydney Morning Herald Published on Wednesday, November 3, 2004 by the Sydney Morning Herald (Australia) What We Call Peace is Little Better Than Capitulation To a Corporate Coup by Arundhati Roy
This is an edited extract from the 2004 Sydney Peace Prize lecture delivered by Arundhati Roy at the Seymour Center last night. Sometimes there's truth in old cliches. There can be no real peace without justice. And without resistance there will be no justice. Today, it is not merely justice itself, but the idea of justice that is under attack. The assault on vulnerable, fragile sections of society is so complete, so cruel and so clever that its sheer audacity has eroded our definition of justice. It has forced us to lower our sights, and curtail our expectations. Even among the well-intentioned, the magnificent concept of justice is gradually being substituted with the reduced, far more fragile discourse of "human rights". This is an alarming shift. The difference is that notions of equality, of parity, have been pried loose and eased out of the equation. It's a process of attrition. Almost unconsciously, we begin to think of justice for the rich and human rights for the poor. Justice for the corporate world, human rights for its victims. Justice for Americans, human rights for Afghans and Iraqis. Justice for the Indian upper castes, human rights for Dalits and Adivasis (if that.) Justice for white Australians, human rights for Aborigines and immigrants (most times, not even that.) It is becoming more than clear that violating human rights is an inherent and necessary part of the process of implementing a coercive and unjust political and economic structure on the world. Increasingly, human rights violations are being portrayed as the unfortunate, almost accidental, fallout of an otherwise acceptable political and economic system. As though they are a small problem that can be mopped up with a little extra attention from some non-government organisation. This is why in areas of heightened conflict - in Kashmir and in Iraq for example - human rights professionals are regarded with a degree of suspicion. Many resistance movements in poor countries which are fighting huge injustice and questioning the underlying principles of what constitutes "liberation" and "development" view human rights non-government organisations as modern-day missionaries who have come to take the ugly edge off imperialism - to defuse political anger and to maintain the status quo. It has been only a few weeks since Australia re-elected John Howard, who, among other things, led the nation to participate in the illegal invasion and occupation of Iraq. That invasion will surely go down in history as one of the most cowardly wars ever. It was a war in which a band of rich nations, armed with enough nuclear weapons to destroy the world several times over, rounded on a poor nation, falsely accused it of having nuclear weapons, used the United Nations to force it to disarm, then invaded it, occupied it and are now in the process of selling it. I speak of Iraq, not because everybody is talking about it, but because it is a sign of things to come. Iraq marks the beginning of a new cycle. It offers us an opportunity to watch the corporate-military cabal that has come to be known as "empire" at work. In the new Iraq, the gloves are off. As the battle to control the world's resources intensifies, economic colonialism through formal military aggression is staging a comeback. Iraq is the logical culmination of the process of corporate globalisation in which neo-colonialism and neo-liberalism have fused. If we can find it in ourselves to peep behind the curtain of blood, we would glimpse the pitiless transactions taking place backstage. Invaded and occupied Iraq has been made to pay out $US200 million ($270 million) in "reparations" for lost profits to corporations such as Halliburton, Shell, Mobil, Nestle, Pepsi, Kentucky Fried Chicken and Toys R Us. That's apart from its $US125 billion sovereign debt forcing it to turn to the IMF, waiting in the wings like the angel of death, with its structural adjustment program. (Though in Iraq there don't seem to be many structures left to adjust.) So what does peace mean in this savage, corporatised, militarised world? What does peace mean to people in occupied Iraq, Palestine, Kashmir, Tibet and Chechnya? Or to the Aboriginal people of Australia? Or the Kurds in Turkey? Or the Dalits and Adivasis of India? What does peace mean to non-Muslims in Islamic countries, or to women in Iran, Saudi Arabia and Afghanistan? What does it mean to the millions who are being uprooted from their lands by dams and development projects? What does peace mean to the poor who are being actively robbed of their resources? For them, peace is war. We know very well who benefits from war in the age of empire. But we must also ask ourselves honestly who benefits from peace in the age of empire? War mongering is criminal. But talking of peace without talking of justice could easily become advocacy for a kind of capitulation. And talking of justice without unmasking the institutions and the systems that perpetrate injustice is beyond hypocritical. It's easy to blame the poor for being poor. It's easy to believe that the world is being caught up in an escalating spiral of terrorism and war. That's what allows George Bush to say, "You're either with us or with the terrorists." But that's a spurious choice. Terrorism is only the privatisation of war. Terrorists are the free marketeers of war. They believe that the legitimate use of violence is not the sole prerogative of the state. It is mendacious to make moral distinction between the unspeakable brutality of terrorism and the indiscriminate carnage of war and occupation. Both kinds of violence are unacceptable. We cannot support one and condemn the other.
© 2004 Sydney Morning Herald
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